18 de março de 2011


Viver no paralelo 30 em prol da Natureza
Selvagem Pequena ou o “Survivor”
A revista “Olhar” vai, neste e no próximo número, mostrar as ilhas Selvagens, com uma visão diferente: como vivem e o que fazem os vigilantes, quem são, afinal, os homens que abdicam de todas as comodidades de uma urbe para se dedicar ao trabalho feito em prol da Natureza. Mesmo que isso signifique a falta do noivo no próprio casamento, porque a Marinha não o pôde ir buscar para trazer de volta da comissão de serviço, ou que custe a quem teve de estar 26 horas com a cabeça aberta a “navegar” até ao hospital, a bordo de uma traineira. Histórias para contar aos netos não faltam. Algumas delas vão ficar também aqui. Histórias de alegrias e momentos menos bons.
Fim de tarde no Funchal. A bordo do navio balizador “Schultz Xavier”, da Marinha de Guerra Portuguesa, os homens comandados pelo capitão-tenente Silva Rocha ultimam os pormenores para a viagem. Pela frente, estão dezoito horas de viagem Atlântico abaixo, rumo ao paralelo 30. A Selvagem Pequena é o primeiro destino da viagem que só nos trará de volta ao mesmo porto na madrugada de sexta-feira. Dali para a frente, não há telemóveis e a noite será apenas acompanhada pela lua, o mar e as estrelas, que, aos milhares, testemunham a descida suave do navio pelas águas da nossa Zona Económica Exclusiva.
Os Vigilantes da Natureza, perfeitamente entrosados com os 42 tripulantes do “Schultz”, já conhecem alguns até de outros navios, de outras rendições, de outras viagens.
Jantam e conversam uns com os outros. Na popa, depois da refeição, vêem-se as Desertas cada vez mais distantes e o pôr-do-sol cada vez mais perto.
Há quase como um “sentir-se em casa”. E as questões logísticas da rendição acabam por ser abordadas pelo comandante e pela equipa de profissionais do parque ali mesmo, numa conversa informal que flui naturalmente. Há um verdadeiro espírito de equipa.

Dormir no porão já é um hábito

À medida que a noite avança, cai o silêncio quase total no navio, apenas quebrado pelas mudanças de turno que se sucedem, a cada três ou quatro horas, na casa da máquina e na ponte.
Os Vigilantes vêem um filme numa das salas, acompanhados pelos praças. DVD é coisa que não falta a bordo, até porque não há outra forma de ver alguma imagem no ecrã que não seja essa. Mais tarde, descem para o porão. Dormem nos sacos-cama. À volta, estão as latas brancas cheias de comida, devidamente acondicionadas e divididas antes da viagem preparada com a antecedência que uma permanência de pelo menos 21 dias obriga.
São quatro. Dois menos “experimentados” para a Selvagem Pequena, Sandro e Pedro, Isamberto Silva e Paulo Moniz para a Selvagem Grande, que conhecem desde há quase 18 anos.
A mãe de Pedro estivera no porto do Funchal preocupada com a “estreia” do filho na Selvagem Pequena. Porque o isolamento, ali, é ainda superior ao da Grande. Pedira-lhe que fosse dando notícias, mas essas, a partir da pequena ilha, não são fáceis de dar. De qualquer forma, ainda em terra firme, um dos colegas disse-lhe, ironicamente, que, «se houver más notícias, damos-lhe logo que soubermos».

E fez-se luz finalmente 

Por volta das cinco horas avistam-se os faróis das duas Selvagens. O “Schultz” passa para sul, para fundear apenas pela manhã frente à ilha mais pequena.
A azáfama começa, o bote do balizador junta-se, na água, ao do Parque Natural, que já tem várias caixas para embarcar de regresso. Abastecem-se os “jarricães” de água para ficar na ilha durante as próximas três semanas.
O transbordo é feito em cerca de uma hora. À praia da Selvagem Pequena, chegam então Pedro, Sandro e Isamberto, que, apesar de ir para a Grande, vai dar uma mão aos colegas. O espírito de equipa vem ao de cima a todos os minutos, com a ajuda a estender-se mesmo ao momento de arrumar as compras nas prateleiras.
Sabem todos que a única cara que Pedro verá nas próximas semanas é a de Sandro e vice-versa. Mas não se fala sobre isso. A casa é apresentada ao “maçarico” Pedro. Tem na rua um “ginásio” da Idade Média, nada mais do que um banco de madeira apodrecida com um par de “halteres” feitos com “bóias” de navios, ao lado de um banco de jardim no mesmo material quase enferrujado.
A casa agora já não é enterrada no Inverno, mas houve anos em que isso aconteceu no final de cada quatro meses, para que as alturas consideradas piores não “varressem” a “quinta”. O que não era “escondido” ia para a Selvagem Grande ou então para o Funchal, para reparar.
Há uma vereda de areia que é o único caminho por onde se pode andar, para não pôr os pés onde há milhares de ninhos de calcamares. Desde a praia até ao Pico do Veado, onde há o farol, a caminhada é feita também em vereda de areia, mas o cume é alcançado com os passos dados na rocha escura.
Fazem diariamente aquele trajecto. É por isso que abdicam de comodidades sem as quais muita gente não passa. Por isso e pelos calcamares, pelos garajaus, pelas cagarras.

Tapar o farol se algo correr mal

Pela frente, têm três semanas de muito trabalho, de muitos livros, de muita faxina na pequena casa, até porque ali cozinha-se e faz-se tudo o que é necessário ao bem-estar.
Não há duche. Nas três semanas seguintes, o banho é tomado em condições pouco cómodas. Mas não é isso que os demove. Aliás, ficámos com a sensação de que nada os demove. A vontade de servir é tanta que nem Pedro, que pergunta constantemente aos colegas por coisas relacionadas com a casa, parece assustado por três semanas de televisão de Canárias, se o transformador funcionar, de luz racionada, captada pelos painéis de energia solar, de noites de conversa racionada para render durante as noites que se seguem e que nunca se sabe, ao certo, quando terminam.
De resto, há que ter em conta que é necessário contactar a Selvagem Grande todos os dias. Se não for de manhã, terá de ser forçosamente à tarde.
Há todo um ritual à volta desses contactos que é necessário fazer. Porque se algo correr menos bem, há procedimentos que têm de ser seguidos para que, na Selvagem Grande, se saiba que está tudo bem com quem está na Pequena. É tudo muito simples: se a falha de contacto se dever a problemas com o rádio ou a problemas com a propagação das ondas, não há procedimentos a tomar. Agora, se alguma outra coisa acontecer, como algum ferimento num dos vigilantes ou algo que inspire mais cuidados, o procedimento é só um: cobrir o farol à noite.
Na Selvagem Grande, onde todas as noites se olha para o Pico do Veado, os vigilantes, ao detectarem a falha, avisam automaticamente a Madeira e o navio da Marinha sai de imediato com destino às pequenas ilhas. Não é possível fazê-lo de outra forma. É impossível ir de uma ilha à outra de bote, pois a distância é grande, cerca de dez milhas.

Electricistas e médicos

Isamberto senta-se à mesa, Pedro e Sandro estão no espaço da casa que é uma cozinha. Aumentada depois da construção da casa original, a estrutura de madeira é um verdadeiro “convite” à sauna. Talvez também por isso as lagartixas se sintam em casa e andem a passear livremente pelos balcões, pelas mesas e até se fazem convidadas quando algum dos vigilantes está a almoçar.
Na Selvagem Pequena fiscaliza-se a área, quase sempre por terra. Vê-se se tem lixo, se algum animal deu à costa, como da vez em que apareceu o cachalote morto.
Quanto a visitantes “humanos”, também os há. E há os que querem apenas pisar terra firme e conhecer a ilha depois de muitos dias de mar e os que vêm em embarcações de pesca, com bandeira espanhola. Nessa altura, avisa-se a Selvagem Grande, que avisa o Funchal, e o navio da Marinha ou o “aviocar” averiguam o que se está a passar.
Por outro lado, há outras coisas para fazer. Solucionar avarias, nomeadamente eléctricas, arranjar pequenas coisas.
Ou seja, ser electricista e carpinteiro faz também parte do trabalho de vigilante. E se houver algum problema de saúde que possa ser tratado ali, também são médicos. Mas, sobretudo, é preciso ter um espírito muito forte, porque há que aguentar tudo isso só com a ajuda do companheiro de comissão. E é sempre necessária uma boa dose de psicologia para superar diversos contratempos, nomeadamente os dias de aniversário que podem não ir passar a casa ou mesmo não poder comparecer ao próprio casamento, como aconteceu, há uns anos, com Carlos Silva. É que a Marinha não o pôde ir buscar e a rendição teve de ser feita depois da data prevista.
Não foi fácil ter de suportar a ideia de não ter vivido, no dia certo, essa data tão importante na vida de qualquer pessoa.
Estas histórias ficam e ficarão sempre para ser contadas aos netos, no dia em que os vigilantes se reformarem. Porque a julgar pelo que vimos, não devem deixar de fazer comissões nas ilhas antes da idade limite para trabalhar.
Porque, das Selvagens, ou se gosta, ou não.
Não pode haver meio-termo para se fazer esse trabalho. E privar-se de tudo em prol da Natureza, ainda por cima correndo riscos de ser abordado por todo o tipo de pessoas que ali podem chegar, não é para todos. E nós, deste lado, raramente nos lembramos de que há homens que abdicam de festas de aniversário, de uma ida ao cinema, de um simples café numa esplanada ao fim da tarde, para que a história não morra.
Mas lá que ficamos com uma “pontinha” de inveja, lá isso ficamos.
Na próxima semana, “contamos” as histórias da Selvagem Grande na voz de três dos vigilantes mais antigos e do regresso atribulado no “Schultz Xavier” a bom porto.
 


Selvagem Grande é a casa e o trabalho de quem abdica de tudo
Milhares de motivos para ficar por ali
A “Olhar” publica hoje o segundo dos artigos sobre as ilhas Selvagens. Com as histórias de três dos mais antigos vigilantes, se bem que um deles seja um técnico de informática apaixonado por fotografia. Na noite em que a “Olhar” ficou na Selvagem Grande, houve tempo para “olhar” o passado, “ouvir” as cagarras, “tocar” as histórias de vida, “cheirar” o mar e “degustar” a felicidade de quem já leva 18 anos de viagens Atlântico abaixo para aquilo a que chama “casa”. É uma vida com “cinco sentidos” bem apurados. Porque não há nada que pague a felicidade de poder passar serões ali, com a baía à frente e dezenas de milhares de cagarras a desejarem as boas-noites.
As gargalhadas confundem-se com os gritos das cagarras. A noite já caiu há muito e as milhares de cagarras que regressam à Selvagem Grande acompanham a conversa, no quintal da casa, que surge tão naturalmente como as estrelas que se multiplicam no céu.
Isamberto Silva, Paulo Moniz e Carlos Freitas, um dos primeiros “vigilantes” da Reserva Natural, criada em 1971, preparam-se para contar as histórias de anos e anos de viagens. A ideia é apenas conversar e o único objecto que denuncia trabalho é o gravador ligado que capta os momentos de uma noite igual a tantas outras. Na baía, um iate francês e, mais longe, as luzes do NRP “Schultz Xavier”. De resto, apenas o farol da Selvagem Pequena aparece à distância e de vez em quando há sempre um vigilante que olha para o outro lado, para se certificar de que tudo continua bem com Pedro e Nélson.
Carlos Freitas descreve as diversas fases pelas quais a casa, que ajudou a construir, passou. Com as várias obras para “arranjar” o que o mar estragou em dias e noites de revolta. A natureza sempre o atraiu e os sons das aves marinhas acabam por fazer parte da sua vida. Mas Carlos Freitas, técnico de informática, não se separa da sua máquina fotográfica e confessa que nesta comissão, na Selvagem Pequena — de onde regressava nesse dia para o Funchal, depois da pernoita na Grande —, “tirou” cinco mil fotografias. Aliás, o computador portátil com gravador de CD acaba por não parecer do mesmo “cenário” da Selvagem. Mas ajuda a passar o tempo, à noite. Carlos lamenta apenas que desta vez não houve oportunidade de fazer fotografias subaquáticas, outra das suas paixões.
Carlos diz que se tenta não perder a noção do tempo. Porque procura mantê-lo todo ocupado e fazer as tarefas “renderem” até ao último dia.
Isamberto Silva tem quase 18 anos de Parque Natural da Madeira. Quando quisemos saber se tem mais alguns pela frente, a resposta não se faz esperar: «Quero levar isto até ao fim» e «fazer comissões nas ilhas o mais possível». Sempre gostou do isolamento.
Paulo Moniz, que entrou também há quase 18 anos no Parque, confessa que «o que faz falta no Funchal no dia-a-dia são precisamente estes momentos». De silêncio e minutos incontados. De conversas que se podem ter sem o “stress” do quotidiano de uma cidade. De instantes que valem mais do que se fossem vividos noutro ponto do planeta. Ali, valorizam-se as coisas, por mais pequenas que sejam. E dá-se valor ao evoluir do Parque Natural da Madeira. Relembra-se com nostalgia o que eram e no que foram transformadas as estruturas das reservas. E recorda-se da altura em que eram apenas quatro os vigilantes, quando os técnicos do Governo Regional, nas alturas de férias, faziam comissões.

Chegaram a passar fome por estada prolongada

O Parque é uma escola de vida, garante Paulo Moniz. Carlos Freitas, por seu lado, complementa que é durante as comissões que põe em dia trabalhos que exigem concentração e que não consegue fazer na secretária.
“Apanhar” 34 dias de comissão é uma dose que não é recomendável, mas «é nesses momentos que aprendemos a lidar com situações para as quais não estávamos preparados».
Aconteceu a Isamberto e a Paulo, numa altura em que não puderam ir buscá-los. «Acabou-se a comida» e «não tínhamos calo», foi nos primeiros anos. Comeram tudo o que havia em casa porque iam embora, e, depois, tiveram de comer massa e arroz, até que um pesqueiro ficou com a âncora presa no fundo e às sete da manhã alguém bateu à porta a pedir ajuda.
Paulo foi ao fundo do mar tirar o ferro e em troca receberam um saco com frango, carne e outras iguarias que já não viam há muitos dias.
«Há um misto de aventura e de aprendizagem», explica Carlos Freitas. Principalmente pelo espírito de vigilante que foi incutido pelo grupo inicial. «Aprendi a fazer pão nas Desertas» e hoje Isamberto é perito em bolo do caco. Os vigilantes começaram a ser vistos como pessoas diferentes. A geração inicial do parque, conta Carlos, complementava-se. Isamberto adora aranhas, Paulo dedica-se às aves, Carlos adora o mar. Hoje, dizem com toda a certeza que «houve deles, não menosprezando, que vieram porque, não tendo uma base de estudos muito grande, tinham um rendimento superior no Parque». E quem «vinha com uma perspectiva de ganhar dinheiro» dificilmente se aguentou duas semanas.

Do encantamento à falta de motivação

Ali, só se sabe a data certa porque se escreve o diário, pois, normalmente, o relógio é tirado no primeiro dia. O diário é uma tentativa de guardar a memória das ilhas. E começou a ser escrito para registar o avistamento das primeiras aves, das primeiras espécies identificadas, as posturas, os animais que aparecem diferentes… Estão todos arquivados. E vêem-se as diferenças entre os primeiros e os últimos dias das comissões. No início são os poemas sobre a ilha maravilhosa, no fim são as queixas pela falta de comida diversificada.
Há gargalhadas que se dão que ecoam por toda a baía. Porque os momentos são dignos de ser recordados. E hoje ri-se do que aconteceu, mas na hora apenas deu vontade de chorar. Paulo Moniz lembra-se do momento em que “abriu” a cabeça quando escorregou a tentar pôr o bote em terra. E com tantos dias no ano para isso acontecer, o dia 29 de Outubro de 1993 não foi o melhor. A Marinha andava atarefada com as buscas dos corpos do temporal e o vigilante teve de ir de traineira para o Funchal. Demorou 26 horas a chegar ao hospital. Hoje, exibe a cicatriz que olha todos os dias ao espelho.
Isamberto tem também um momento desses na sua história. Num dia de mar calmo, nas Desertas, foi para um posto de observação de lobos-marinhos no Calhau das Areias. O mar alterou-se e depois de sete tentativas para pôr o bote na água desistiram. A noite caiu e «tivemos de passar ali a noite. Não se podia sair da praia». Às cinco da manhã», conta, «a maré encheu, o mar piorou e tivemos uma situação muito difícil, começando a chover e a cair uma série de derrocadas». Esconderam-se numa pequena concavidade e, algumas horas depois, quando chegaram à casa, estavam sãos e salvos e passaram o resto da estada sem sair para o mar.

O Natal tem árvore e a mesa posta

Quando foram para o Parque, Isamberto e Paulo ainda não tinham filhos. Mas é Carlos quem explica como se pode lidar com filhos, a quem tem de se dizer que o trabalho também se faz fora. Para ele, a melhor coisa que aconteceu foi ter levado o filho à Selvagem Grande para ver o que o pai faz quando está ausente.
Passar os próprios dias de aniversário e dos familiares mais próximos é também um dos reversos da medalha. Isamberto teve de adiar, uma vez, a sua própria festa para a qual já tinha convidado muita gente. Mas há um lado positivo nessas ausências de festas: no Natal, defende-se o fígado de tanto almoço e jantar.
Ali, o hábito é o de pôr a mesa no dia 24 de Dezembro com os doces e os licores. É uma mesa muito farta. Faz-se a árvore de Natal e ceia-se, inclusivamente. Só passados oito dias é que a mesa é desfeita. A noite de passagem de ano é sempre a gosto do vigilante. Há quem goste de passar o Natal lá em baixo, quem goste do Ano Novo. E há quem tenha de ficar as duas datas, porque não há rendição.

Todos acarinham as ilhas quando as conhecem 

«Nesta vida de cigano», há histórias que ficam. E as amizades que ficam das inúmeras viagens com marinheiros. O relacionamento é bom, há deles que regressam, anos depois, em outros navios. «O próprio comandante do balizador “Schultz Xavier”, conta Paulo Moniz, «já fez viagens connosco há dez anos, num dos patrulhas». E, ao longo dos anos, conseguiram arregimentar para as fileiras de defensores das ilhas dezenas e dezenas de elementos das diversas guarnições, que sentem, também, que prestam um serviço ao país.
Desaparecer camas, também já aconteceu. O mar, às vezes, prega partidas, quando se lembra de “estragar o dia” aos vigilantes, regressados do patrulhamento ao fim do dia. «Quando nos aproximámos da casa, não existia». Andaram a fazer “sprints” de um lado para outro a tentar resgatar comida, tendo de permanecer, na semana seguinte, numa furna.
Na altura, uma vez mais, valeu o apoio da Marinha, a transportar material para reconstruir a moradia que hoje existe.

Açúcar no saleiro e sal no açucareiro

Há, admitem, brincadeiras que se fazem, especialmente aos que vão chegar. Ir aos armários encher as panelas de água para quando os substitutos forem cozinhar tomarem um banho. Pegar num livro e escrever uma receita de um bolo inventado «que levava tudo» também é um dos passatempos. Porque alguém chegou e resolveu experimentar.
Mas abrir as cascas dos amendoins, pôr piripiris dentro e fechar as cascas com cola, só lembra mesmo a quem tem de passar o tempo, à noite, com alguma coisa.

Regresso atribulado põe bióloga a dormir

O regresso estava inicialmente marcado para o meio da tarde de quinta-feira. Mas estas coisas não se prevêem, e o balizador avisou, para a casa da Selvagem Grande, que os vigilantes e os cinco biólogos devem chegar a bordo às 13h30. O almoço fica por comer e Isamberto e Paulo têm cebola e cenoura picada para quinze dias. Os biólogos ainda estão no planalto a fazer os seus últimos registos. Come-se qualquer coisa à pressa a lamenta-se que a caldeirada fique por provar, mas, certamente, os vigilantes têm comer para quatro ou cinco refeições.
O “stress” de arrumar as bolsas à pressa põe todas as dez pessoas que vão embarcar nervosas. O bote do Parque leva a comitiva para bordo, Paulo Moniz faz as quatro viagens necessárias para o transbordo e a entrada no “Shultz” complica-se. O mar está alterado o suficiente para toda a gente “tomar banho” antes de conseguir subir a escada de madeira. O navio “não pára quieto”, o bote não fica estável. Dali para a frente, nas dezasseis horas de mar que nos esperam, não estão previstas melhorias. A bióloga continental vai-se cada vez mais abaixo e ao final da tarde acaba na enfermaria. Nada que um comprimido de valeriana não resolva, aliado ao alívio que, entretanto, o mar já tinha provocado no seu estômago.

O melhor é ficar deitado

O tempo continua “feio”. O céu já não tem as estrelas da descida e o “Schultz” não desce suavemente as águas da nossa Zona Económica Exclusiva como dois dias antes. Agora, a vaga está à proa e o abrigo da ilha da Madeira só vai aparecer perto da uma da madrugada.
O melhor, mesmo, é ficar deitado, a forma mais indicada de equilibrar o corpo e não correr riscos de ser “projectado“ por uma ou outra vaga maior. Assim, com toda a comitiva que regressava preocupada com a bióloga, que dormia descontraidamente na enfermaria, fez-se o regresso, que nos trouxe a bom porto às seis da madrugada de sexta-feira.
Algumas das peripécias por que passaram estes homens ficaram aqui contadas, mas temos a certeza de que muitas histórias ficaram por contar.
De qualquer forma, há que ter em conta que os mais de trinta vigilantes são, afinal, a face mais visível de toda uma estrutura montada na Madeira, que funciona como um elo. Apesar disso, os que existem agora, quase dez vezes mais do que os quatro do início, são pessoas que abdicam de tudo para se dedicar a uma causa que é, afinal, de todos nós.
 
Link: http://www.jornaldamadeira.pt/not2008.php?Seccao=16&id=16201

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