O Helicóptero EH-101 sobrevoa, às primeiras horas da manhã, a Selvagem Grande.
À primeira vista, parece um território deserto e árido. Mas as aparências iludem. Mal se abre a porta, um cão corre a dar as boas vindas, primeiro sinal de que há gente naquela verdadeira 'jangada de pedra' que é o território mais a sul de Portugal. Parte integrante da freguesia da Sé, a Selvagem Grande fervilha de vida.
E não é só a cadela trazida para ali com um mês e meio e baptizada de 'Selvagem'. Os vigilantes do Parque Natural da Madeira garantem a protecção em equipas rotativas, que se alternam a cada três semanas.
Mas estes não são os únicos habitantes daquela ilha aparentemente deserta. O tesouro maior não está à vista, mas, se procurarmos em cada recanto, debaixo de cada pedra há um santuário de espécies animais e vegetais que tornam a Selvagem Grande um território ímpar.
Paulo Oliveira, director do Parque Natural da Madeira, explicou ontem ao ministro da Defesa e ao General Chefe do Estado Maior da Força Aérea que ali existem onze espécies de plantas que não se encontra em mais nenhuma parte do mundo. Além disso, é abrigo para cinco espécies endémicas de aves: as Cagarras, as Almas Negras, o Roque de Castro, os Calcamares e os Pintainhos.
O grande ex-libris é, contudo, a Cagarra. Existem neste momento 36 mil casais, mas houve tempos em que o animal era explorado por causa da carne, dos ovos e das penas.
O massacre teve fim quando, em 1971, se iniciou a reserva naquela ilha, a 1ª Reserva Natural de Portugal.
Aliás, como explicou Paulo Oliveira, a Selvagem Grande é pioneira em muitos outros aspectos da conservação da natureza. Foi ali que se desencadeou a primeira grande operação para exterminar coelhos e 'murganhos', responsáveis pela destruição de 'habitats'. E hoje a Selvagem Grande é a maior ilha do mundo onde o 'murganho' está, de todo, erradicado.
Um dos trabalhos que biólogos e os vigilantes da natureza têm agora a seu cargo é precisamente defender as espécies que ali nidificam. Uma delas é a Cagarra que nesta altura está no ninho. Aquela ave põe apenas um ovo por ano e leva dois meses para chocar. Por isso se entende que invista tanto nessa única postura. Em toda a extensão da ilha procuram locais abrigados do vento constante que se faz sentir e ficam ali, imperturbáveis, mesmo perante a presença humana. Uma delas chegou ontem a ser retirada do ninho para receber uma anilha e ser baptizada com o nome de 'Força Aérea', em homenagem àquele ramo das Forças Armadas que este ano comemorou o seu 58º aniversário na Madeira. Mas para lá regressou, aparentemente sem se importar muito com a situação.
A presença humana é, aliás, uma constante naquela ilha. São poucos de cada vez, mas garantem um trabalho continuado de protecção, vigilância e estudo das espécies.
Carlos Santos, um dos vigilantes, diz que viver três semanas ou mais numa ilha deserta é algo a que a cabeça e o corpo se habituam. A distância e o isolamento podem ser complicados, mas quem escolhe aquela vida já sabe ao que vai. E, para mais, a verdade é que gostam do que fazem. Mesmo quando o mar se 'irrita' e prolonga o tempo de serviço. Carlos Santos, por exemplo, já ficou nas Selvagens 22 dias seguidos, mas houve quem ficasse mais.
Agora, as coisas estão facilitadas. Os espanhóis nunca mais apareceram e a pesca clandestina está em 'maré baixa'. Até porque a zona está interdita à pesca, porque apareceu na zona uma alga venenosa, que não tem qualquer implicação nos peixes, mas traz muitos problemas de saúde aos humanos. E é assim que, em tempo de bonança, se vive na Selvagem Grande, numa espera calma pela nascer das novas Cagarras que renovam o ciclo da vida nas ilhas mais a sul do território.